*Adelino Francisco de Oliveira é Coordenador da Pasta de Políticas Étnico-Raciais do Sinasefe-SP e Docente no IFSP Piracicaba

 

Recentemente fui acusado de ser um professor ativista e também doutrinador! Com dedo em riste e voz alterada, fui atacado por ser um esquerdista que faz doutrinação ideológica em classe, no decurso das aulas de filosofia. Aquelas palavras, vazias de qualquer sentido, proferidas com certa convicção e ódio, em tom acusatório, ficaram ecoando em minha mente – doutrinação ideológica, ativismo político, militância partidária, esquerdismo, manipulação de conteúdo. Minha questão, como admirador da filosofia, era compreender o que cada um daqueles termos representava realmente, o que queriam dizer?

Para aquele agressor, que talvez sem se dar conta assumia a postura de autêntico ativista partidário, inflamado em sua equivocada denúncia, todas aquelas palavras pareciam fazer muito sentido, traduzindo, até com justeza, a atuação que eu desempenhava enquanto docente. Interessante que sempre me intrigou as certezas absolutas, defendidas de maneira peremptória, sem rodeios, sem meios-termos, sem nenhum pudor. E aquele ativista estava me acusando, com a máxima veemência, como se estivesse defendendo uma causa urgente, como se estivesse diante da verdade mais fundamental e imprescindível, que merecia toda sua dedicação militante.

Alcançar a verdade sempre foi o grande objetivo da investigação filosófica. Desde suas origens, no contexto da Antiguidade Grega, a busca pela verdade motivou a produção no campo da filosofia. Mesmo no contemporâneo, a contemplação da verdade permanece sendo o objeto por excelência do ato de filosofar. Cada pensador, em mais de dois mil anos de história, por meio da apresentação e defesa de uma teoria original, considerava ter vislumbrado apenas dimensões da verdade, sem, contudo, contemplá-la em sua totalidade. A sabedoria filosófica pressupõe uma certa dose de humildade, fundada na compreensão de que a verdade última escapa à consciência mais imediata. Neste ponto, é famosa, e amplamente conhecida, a alegoria da caverna, apresentada por Platão, em sua imprescindível A República.

Em uma analogia viva e atual da alegoria platônica da caverna, aquele acusador quixotesco, preso em suas percepções disformes e incoerentes, forjadas a partir das desinformações recebidas via sua bolha das redes sociais – essa renovação da velha caverna que ainda aprisiona consciências -, imbuído de uma ousadia de quem professa uma fé religiosa, levantou sua voz contra minhas aulas, da mesma maneira que o cavaleiro da triste figura se lançava contra os moinhos de vento.

Em apenas 45 minutos corridos de aula semanal, metade do tempo de uma partida de futebol, é bem difícil avançar em uma exposição mínima do pensamento de um filósofo, qualquer que seja. No decurso de um bimestre soma-se apenas 360 minutos ou 6 horas de aulas. Entre chamadas e cumprimentos, sobra pouquíssimo tempo para a arte da filosofia. Mal se consegue dizer algo de mais relevante sobre o pensador que estiver em pauta. Neste cenário, a tarefa da doutrinação aparece como uma missão impossível, algo que não tem lugar nem mesmo sentido, além de ser um contrassenso em relação ao objeto da própria filosofia.

A doutrinação é própria da dinâmica das igrejas, que, catequeticamente, inculcam verdades inquestionáveis aos fiéis. A sala de aula, em uma disciplina de filosofia, é, por outro lado, o lugar privilegiado que busca aguçar o pensamento ético, a partir do diálogo e do debate, vislumbrando desenvolver a autonomia do pensar, fundado no senso crítico e problematizador. No processo de doutrinação não cabe a dimensão do questionamento, já em uma aula de filosofia, a capacidade de questionar, de levantar indagações, destaca-se como o elemento mais central. De fato, só se faz filosofia na medida em que se cria condições para se romper com processos de alienação e doutrinação.

Fazendo a leitura dos sinais dos tempos, com todo limite cognitivo que paira sob o contemporâneo, confesso que tal acusação até demorou para chegar. Causava-me uma certa decepção e até frustração o silêncio dissimulado dos herdeiros deste triste movimento que despreza e queima livros. Em um contexto de debate político rebaixado, pautado em desinformações e pós-verdades, mesmo uma singela e despretensiosa aula de filosofia se torna uma perigosa ameaça, na medida em que instiga o despertar para a luz do pensamento crítico e autônomo.

  O Sinasefe-SP, em defesa dos educadores, deve também entrar neste debate, buscando identificar os novos sensores de pensamento, com suas estratégias para constranger docentes e discentes, em um ataque aberto contra o princípio da liberdade de cátedra. Quantos educadores, no Instituto Federal de São Paulo, já sofreram perseguições e foram vítimas de censura ideológica, respaldada na falácia de se combater ativismo partidário e doutrinação em sala de aula? Este levantamento se faz necessário, para se construir perspectivas acadêmicas de resistência em defesa de uma formação comprometida com os direitos humanos, com a democracia e com a construção do pensamento livre, autônomo, solidário e ético.