Pode-se cometer crime, explicitar toda sorte de preconceitos racistas, negar a legislação e a própria história e permanecer impune, escondido sob o véu do anonimato de um parecer acadêmico? Se há uma legislação, definindo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África, como a Lei 10.639/2003, ou mesmo a Lei 11.645/2008, que versa sobre a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos currículos escolares do ensino fundamental e médio, como o avaliador pode desconsiderar e até se opor a tais princípios legais? Ainda, se há um edital, com critérios de referências para a avaliação de projetos, que enfatiza a relevância da cultura e dos saberes populares, como determinados pareceristas podem simplesmente avaliar e, sistematicamente, reprovar projetos, ignorando totalmente tais orientações?
A lei 10.639 de 2003, já soma mais de 20 anos! Esta emblemática lei, que posiciona como obrigatório o ensino da história e da cultura africana, é resultado de lutas históricas do movimento negro por reconhecimento, vislumbrando construir, a partir do locus da sala de aula, uma cultura antirracista, capaz de superar a ignorância e o negacionismo histórico em relação à cultura africana e afro-brasileira. Para além da lei, há ainda todo um contexto cultural, presente inclusive nas redes sociais, que ressalta a urgência de se resgatarem as tradições africanas como dimensões fundamentais para uma aproximação e compreensão mais profunda da própria identidade brasileira. Então, não cabe argumentar qualquer discordância ou mesmo desconhecimento da lei.
O pensamento decolonial consiste, justamente, em promover um rompimento com uma perspectiva histórica que tem como única referência as vozes proferidas a partir da Europa ou da Metrópoles. A deturpação histórica, própria do pensamento colonizado, avança em concepções que buscam negar qualquer traço de originalidade, sutiliza e genuinidade das culturas africanas, em um movimento que justifica toda sorte de racismos e preconceitos. O conhecimento da história e da cultura africana desponta como o elemento central para a construção de um outro e também novo olhar sobre a própria identidade cultural do povo brasileiro. O conhecimento torna-se um instrumento imprescindível para desconstruir mitos e suplantar visões estigmatizadas e cheias de preconceito, que projetam uma representação da África como um espaço homogêneo de produção de uma subcultura.
Advogando uma pseudo neutralidade acadêmica ou científica, em nome de um abstrato senso técnico e de imparcialidade, há pareceristas que insistem em negar a força da lei e desrespeitam, inclusive, os critérios estabelecidos em edital, para, em uma militância velada e obtusa, reprovar projetos de cunho cultural, que buscam pautar o verdadeiro debate sobre a força e o sentido da cultura afro-brasileira. Quantos projetos, que pretendem desnudar o racismo estruturante em nossa sociedade, têm sido sumariamente reprovados, não recomendados, com avaliações implacáveis, com nota zero? Estes pareceristas não passam de mero sensores, ideólogos que reproduzem e perpetuam, sob o véu do anonimato e da avaliação cega, a lógica do pensamento colonizado. Em última instância as Instituições acadêmicas devem responder por seus pareceristas, pois acabam por legitimar, avalizar e chancelar suas decisões equivocadas. Por isso a urgência de instâncias de transparência e controle, além do processo de formação ética e crítica envolvendo o quadro de pareceristas, para que as políticas públicas, que visam promover, por meio de projetos, a educação para as relações étnico-raciais, não sejam minadas por dentro, negando o acesso a fomentos, mediante pareceres negacionistas e racistas que se apresentam travestidos de isenção política e neutralidade científica.
Adelino Francisco de Oliveira
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