O Estudo sobre o negro brasileiro, nos seus diversos aspectos, têm sido mediados por preconceitos acadêmicos, de um lado comprometidos com uma pretensa imparcialidade científica, e, de outro, por uma ideologia racista racionalizada, que representa os resíduos da superestrutura escravista, e, ao mesmo tempo, sua continuação, na dinâmica ideológica da sociedade competitiva que a sucedeu. Queremos dizer, com isso, que houve uma reformulação dos mitos raciais reflexos do escravismo no contexto da sociedade de capitalismo dependente que a sucedeu, reformulação que alimentou as classes dominantes do combustível ideológico capaz de justificar o peneiramento econômico-social, racial e cultural a que ele está submetido atualmente no Brasil através de uma série de mecanismos discriminadores que se sucedem na biografia de cada negro.
Clóvis Moura, Sociologia do Negro Brasileiro
Do Parecer Anônimo
A obrigatoriedade de determinados conteúdos no currículo pode representar uma forma de ideologização do ensino, ao impor uma narrativa específica sobre a história e a cultura. O conteúdo escolar, especialmente em projetos acadêmicos, deve primar por uma abordagem neutra, técnica e plural, evitando favorecer perspectivas identitárias únicas.
No caso em análise, observa-se o uso recorrente de expressões como “rebeldia negra”, “extrema violência”, “capitalismo contemporâneo racista” e “submissão forçada”, termos que carregam forte carga ideológica e militante. Isso pode dificultar o diálogo com interlocutores de diferentes campos acadêmicos ou posições políticas, reduzindo o alcance e a legitimidade da proposta.
Ao afirmar, por exemplo, que o racismo estrutural se manifesta de “forma contundente nesse mesmo território” (Piracicaba e região), o projeto incorre em generalizações e não apresenta dados empíricos ou indicadores concretos que sustentem tal diagnóstico no contexto local. Essa ausência de fundamentação estatística fragiliza o argumento e compromete a seriedade acadêmica da proposta. O texto adota um tom panfletário, mais próximo de um manifesto político do que de um projeto universitário de extensão.
A linguagem altamente militante se sobrepõe a uma abordagem técnica, interdisciplinar e baseada em evidências, o que pode comprometer sua aceitação em ambientes acadêmicos pluralistas. Em relação ao referencial teórico, observa-se a predominância de autores alinhados a uma mesma corrente interpretativa, como Almeida, Castro, Braga e Falcão, sem que haja diálogo com outras linhas teóricas ou contrapontos conceituais. Tal abordagem indica falta de pluralismo e enfraquece o aprofundamento crítico necessário para um projeto de natureza universitária, que deve buscar a formação de pensamento autônomo e dialógico.
A ênfase em termos como “educação emancipatória” e “enfrentamento ao racismo” reforça a percepção de instrumentalização política da cultura, desviando o foco de um estudo técnico e histórico da Capoeira Angola para uma pauta ideológica. Além disso, o projeto sugere que todo o sistema penal brasileiro opera exclusivamente sob a lógica da repressão racial, sem considerar nuances históricas, evoluções jurídicas e variações regionais, o que resulta numa visão simplificada e reducionista do contexto jurídico-institucional brasileiro.
No que diz respeito à comunidade externa, sua presença é tratada apenas como público-alvo, sem evidências de envolvimento efetivo na concepção, planejamento ou definição das atividades. Não há menção à escuta de lideranças culturais locais, mestres de capoeira, ou representações da sociedade civil, o que contradiz os princípios extensionistas de diálogo horizontal e construção coletiva.
Por fim, quanto à avaliação do projeto, o texto menciona “mini avaliações” e um questionário eletrônico final, mas não detalha os instrumentos metodológicos utilizados. Faltam informações essenciais, como: serão avaliações orais ou escritas? De caráter individual ou coletivo? Quais os critérios de análise dos dados coletados? Como serão utilizados os resultados para retroalimentar o projeto? A ausência de tais definições compromete a transparência e a efetividade da avaliação, etapa crucial para qualquer atividade de extensão.
Do Contexto
O parecer reproduzido acima consiste na fundamentação apresentado por um determinado parecerista anônimo para justificar a atribuição de nota zero, em absolutamente todos os quesitos do respectivo edital, ao projeto Rodas de Capoeira Angola e Educação Antirracista, submetido tanto a um edital de fomento da PRX quanto a um edital da CEX. Interessante informar que esta é a segunda edição do mesmo projeto, que, no ano anterior, obteve nota máxima, classificando-se em primeiro lugar. Neste ano de 2025 o projeto em tela foi aprovado em edital da PRX, compondo a lista de apenas 12 projetos aprovados em todo IFSP e, de maneira inesperada, obteve o parecer reproduzido acima, com nota zero, quando submetido ao edital da CEX do campus.
Diante deste cenário, pesquisadores do Neabi, do Nugs, do Coletivo IFSP Democrático e da Pasta de Políticas Étnico-raciais do Sinasefe-SP, em um profícuo diálogo interativo, construíram, coletivamente, o presente documento que agora vem a público, com o intuito de se instaurar um ambiente de debate e reflexão sobre a urgência de se formar os pareceristas do IFSP para uma concepção antirracista, comprometida com a defesa e promoção do programa dos direitos humanos, apontando para uma educação que dinamiza processos de autonomia e emancipação, como preconiza as diretrizes do próprio Instituto Federal em sua concepção de Educação Profissional e Tecnológica (EPT), em uma dinâmica de formação omnilateral. No limite, o IFSP divide a corresponsabilidade pelo conteúdo político dos pareceres emitidos por seus avaliadores.
Do Desvelamento de um Parecer Racista
O parecer, com pseudo análise acadêmica, neutra e técnica, adota postura tendenciosa e desinformada, buscando deslegitimar a relevância do projeto de extensão que se propõe a abordar questões e problemas cruciais da sociedade brasileira. A tese central do parecer de que “a obrigatoriedade de determinados conteúdos no currículo pode representar uma forma de ideologização do ensino” revela uma adesão à perspectiva epistemológica positivista, que se baseia na defesa da separação entre o sujeito e o objeto de conhecimento, sendo o anteparo para justificar o racismo científico. É desconcertante supor que o parecerista desconheça as ligações entre o Positivismo e a escola da criminologia inaugurada com o livro O homem Delinquente, de Cesare Lombroso, em 1876, em que o autor relaciona a criminalidade às características biológicas e fisiológicas das pessoas, afinal, escreve com certa propriedade a defesa da objetividade e neutralidade científicas. Os perigos dessa concepção estão inscritos na dinâmica da história brasileira e mundial. O parecerista ignora ou desconhece essa perspectiva perigosa da educação? Ademais, parece ignorar também que todo currículo já contempla uma seleção sendo, portanto, uma construção social com suas próprias perspectivas e valores. A suposta “neutralidade” defendida não passa de um véu para a manutenção do status quo e da invisibilidade de pautas historicamente marginalizadas.
Chamar o projeto de “tom panfletário” ou “manifesto político” é uma tentativa de desqualificar o engajamento social inerente a qualquer projeto de extensão universitária. O Instituto Federal, bem como a universidade não podem se constituírem como torres de marfim isoladas da sociedade, ambas guardam um papel social transformador e crítico. A linguagem que busca a “educação emancipatória” e o “enfrentamento ao racismo” não é militante no sentido de ser partidária, mas sim engajada na construção de uma sociedade mais justa e equitativa. Confundir essa missão com “instrumentalização política da cultura” é uma distorção da própria função da extensão, que, por definição, busca dialogar com a comunidade e promover impacto social. A Capoeira Angola, nesse contexto, não é apenas um “estudo técnico e histórico”, mas uma ferramenta poderosa de resistência, memória e emancipação. É importante atentar para os protagonistas e representantes da capoeira, uma vez que historicamente foram e são perseguidos. Anteriormente, pela Lei da Vadiagem, e hoje ainda por meio deste tipo de parecer anônimo que se desvela como uma forma de ataque e desvalorização, em flagrante desrespeito às Leis 10.639/03 e 11.645/2008.
A alegação de que o conteúdo escolar “deve primar por uma abordagem neutra, técnica e plural” é uma falácia, especialmente quando se trata de temas como história, cultura e injustiças sociais. A história, por exemplo, não é neutra; ela é contada a partir de diferentes pontos de vista e, muitas vezes, silencia as vozes dos oprimidos. Termos como “rebeldia negra”, “extrema violência”, “capitalismo contemporâneo racista” e “submissão forçada”, longe de serem “cargas ideológicas militantes” no sentido pejorativo que a crítica tenta imputar, são expressões cientificamente embasadas e necessárias para descrever realidades históricas e sociais que persistem no Brasil. Convém indagar ao parecerista neutro se, para ele, a escravidão não se caracterizou por “submissão forçada”, se não se efetivou por meio de “extrema violência”, se não foi legítima a “rebeldia negra” e se não considera necessário o “enfrentamento ao racismo”. Ignorar a existência do racismo estrutural e suas manifestações violentas em nome de uma falsa neutralidade é, em si, uma posição ideológica que compactua com a omissão e a negação histórica.
A crítica de que o projeto “não apresenta dados empíricos ou indicadores concretos que sustentem tal diagnóstico no contexto local” (Piracicaba e região) revela um desconhecimento gritante da metodologia das ciências humanas e sociais. O racismo estrutural, por sua própria natureza, manifesta-se de formas complexas e nem sempre quantificáveis em estatísticas diretas que, desacompanhadas de uma análise aprofundada, podem ser utilizadas para interpretações racistas. Ele se expressa na sub-representação em cargos de poder, na disparidade de renda, no encarceramento em massa, na violência policial seletiva e em diversas outras invisibilidades que não se traduzem em gráficos simples. A ausência de fundamentação estatística direta não fragiliza o argumento, mas sim a compreensão da crítica sobre como se investiga e se denuncia o racismo estrutural. A pesquisa qualitativa, a análise documental, os relatos de experiência e a teoria crítica são ferramentas válidas e robustas para a comprovação desse diagnóstico. Além disso, a crítica contida no parecer, fugindo do escopo específico do projeto, demonstra ignorar a vasta produção acadêmica que documenta e analisa a manifestação do racismo em diferentes contextos regionais do Brasil.
A crítica à predominância de autores como Almeida, Castro, Braga e Falcão, sem “diálogo com outras linhas teóricas ou contrapontos conceituais”, não deixa de revelar uma visão limitada do pluralismo acadêmico. Cabe destacar que o parecerista não apresenta nenhuma indicação de quais “outras linhas teóricas” ele se refere. O pluralismo não significa dar voz a perspectivas que perpetuam a opressão ou que negam a existência de problemas sociais graves. Significa, sim, explorar profundamente as correntes teóricas que melhor se adequam à análise do fenômeno em questão. No caso do racismo estrutural e da história da população negra, esses autores são referências essenciais e reconhecidas por sua contribuição à área. A proposta de “diálogo com outras linhas teóricas” soa como um convite à relativização de verdades históricas e sociológicas para acomodar visões que, por vezes, são negacionistas ou minimizadoras da questão racial. O aprofundamento crítico se dá, muitas vezes, pela exploração exaustiva de uma corrente, e não pela superficialidade de um “equilíbrio” forçado entre visões antagônicas.
A afirmação de que o projeto sugere que “todo o sistema penal brasileiro opera exclusivamente sob a lógica da repressão racial” é uma leitura superficial e distorcida. É evidente que o sistema penal possui múltiplas facetas, mas negar a centralidade da lógica da repressão racial em sua operação no Brasil é ignorar dados estatísticos, estudos sociológicos e a realidade vivida por milhões de pessoas. A população carcerária brasileira é majoritariamente negra, e a seletividade penal é uma realidade inegável. O projeto, ao destacar essa dimensão, não simplifica o sistema, mas ilumina uma de suas características mais perversas e urgentes.
A crítica sobre a ausência de “envolvimento efetivo na concepção, planejamento ou definição das atividades” da comunidade externa e a “falta de menção à escuta de lideranças culturais locais, mestres de capoeira, ou representações da sociedade civil” é parcial e injusta. O projeto apresenta, em seus anexos, o termo de adesão da Escola de Capoeira Raiz de Angola, dirigida pelo mestre Zequinha, representante histórico e guardião de conhecimentos tradicionais do universo cultural da Capoeira Angola. Projetos de extensão, especialmente em suas fases iniciais, podem focar em uma metodologia que se desenvolverá e se aprofundará no contato com a comunidade. A menção de “público-alvo” não exclui a intenção de diálogo horizontal, mas indica a necessidade de direcionar as ações. O projeto, em sua execução, prevê justamente etapas de escuta e participação ativa. A crítica deveria questionar a metodologia proposta para o engajamento e não presumir a ausência total de interação. Além disso, a presença de lideranças culturais e mestres de capoeira na equipe já revela a forte articulação com as lideranças populares e tradicionais.
As críticas sobre a falta de detalhamento dos instrumentos metodológicos de avaliação (“mini avaliações”, questionário eletrônico) e a ausência de informações sobre “critérios de análise dos dados coletados” e “como serão utilizados os resultados para retroalimentar o projeto” são, talvez, os únicos pontos onde a crítica apresenta alguma validade construtiva. A transparência na metodologia de avaliação é crucial para a credibilidade e o aprimoramento de qualquer projeto. No entanto, é importante ressaltar que a ausência desses detalhes em um texto descritivo inicial não significa a inexistência de um plano de avaliação robusto. Muitas vezes, esses detalhes são elaborados em etapas posteriores ou em documentos internos mais específicos.
Em suma, o parecer revela mais sobre a ótica limitante e enviesada do próprio parecerista do que sobre as reais deficiências do projeto. Ao tentar desqualificar um trabalho essencial com argumentos de “neutralidade” e “academicismo” que são, na verdade, disfarces para a manutenção de privilégios e a invisibilidade de pautas cruciais, o parecer demonstra um profundo desconhecimento da função social do Instituto Federal com sua política de extensão e da urgência de se abordar o racismo e suas consequências de forma contundente e transformadora.
São Paulo, julho de 2025.
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígena – Neabi-IFSP
Núcleo de Gênero e Sexualidade – Nugs-IFSP
Pasta de Políticas Étnico-raciais – Sinasefe-SP
Coletivo IFSP Democrático
1 – https://www.ifsudestemg.edu.br/documentos-institucionais/concepcao-e-diretrizes-dos-institutos-federais.pdf
2 – A “Lei dos Vadios e Capoeiras”, referindo-se ao Decreto nº 847 de 1890, estabeleceu punições para a vadiagem e a capoeira no Brasil, refletindo o contexto da época, com forte preconceito racial e social após a abolição da escravatura. Essa lei visava controlar a população negra e marginalizada, caracterizando a capoeira como prática criminosa e associando-a à vadiagem.
3 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm e https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
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